A tragédia ocorrida em Recife, envolvendo patroa, empregada e a morte de uma criança de 5 anos, me lembrou muito Canção de Ninar, livro que foi lançado no Brasil em 2018. Por isso, acho que vale recuperar esta resenha, publicada aqui no Boníssimo.blog dois anos atrás:
A figura da babá já inspirou filmes de terror como A Babá e A Mão que Balança o Berço. A intimidade que se estabelece entre uma família e uma desconhecida contratada para cuidar de seus filhos também inspira Canção de Ninar, da franco-marroquina Leïla Slimani.
Só que aqui o horror é de outra natureza. Não é susto pelo susto, é a história de uma tragédia carregada de conotações sociais. Pode-se dizer até que Slimani incursiona pelo “terror social”, se é que existe esse gênero.
Canção de Ninar foi best-seller na França, venceu o Prêmio Goncourt (o mais cobiçado pelos escritores franceses) e chega ao Brasil pela Tusquet Editores. Justifica em cada uma de suas 190 páginas as credenciais recebidas.

Leïla Slimani constrói de forma brilhante e meticulosa a trama que leva a uma tragédia, anunciada sem muitos detalhes no início da narrativa. E cria uma história para ser devorada pelo leitor, entre fascínio e repulsa.
É primorosa a construção da protagonista, a babá Louise, moça franzina, bonita e eficiente, que encanta o casal classe média Myriam e Paul. Louise faz muito mais do que pede a função, transformando por completo o atribulado cotidiano dos patrões.
Afobados em alcançar o sucesso profissional — ela, advogada; ele, produtor musical –, Myriam e Paul confiam plenamente à desconhecida o cuidado com os dois filhos pequenos. Passam a considerá-la como membro da família. E Louise também se sente assim.
No entanto, a convivência íntima forçada — dentro de um pequeno apartamento — entre essa família aparentemente feliz e uma mulher que, eles não sabem, traz um histórico de dor, perdas e total falta de perspectivas é ponto de partida para a autora elaborar um bem urdido ensaio sobre relações de classe.
É difícil contemplar a tragédia apresentada em Canção de Ninar como algo distante de nós. Ela se torna possível em qualquer lugar onde os abismos sociais, os preconceitos e diferenças de classe são artificialmente transpostos em decorrência de uma dependência mútua.
Na narrativa de Leïla Slimani tudo isso vai fermentando pouco a pouco, parágrafo a parágrafo, até explodir de forma dolorosa.
______________________________
Canção de Ninar
De Leïla Slimani. Tusquets Editores, 191 págs, R$ 25,90.